Terminal de grãos da VLI, em Porto Nacional (TO): o sistema permite carregar um trem de 80 vagões em 4 horas, 10 a menos do que no modelo tradicional (Divulgação) (Divulgação)
São 8h20 da manhã de 16 de
maio, e a reportagem de EXAME assiste à chegada de um trem com 80 vagões vazios
num terminal de grãos da operadora VLI na cidade de Porto Nacional, vizinha de
Palmas, a capital de Tocantins. Dois funcionários verificam se a parte de baixo
dos dois primeiros vagões não abriu com a trepidação do trajeto de mais de
1 200 quilômetros desde o Porto de Itaqui, no Maranhão, enquanto abrem a parte
de cima dos carros, num movimento quase ensaiado. Numa cabine, um operador
aciona um sistema eletrônico e, daquele momento em diante, num galpão com
capacidade para armazenar até 60.00 toneladas de grãos, a soja começa a ser
despejada em esteiras e percorre 300 metros até chegar aos injetores
posicionados em cima dos vagões abertos.
Pouco menos de 20 minutos após a
chegada do trem, a soja começa a cair nos vagões. A cada hora, cerca de 1.800
toneladas de grãos lotam 16 vagões. Para preencher a capacidade da composição
toda são necessárias 4 horas. Por volta de meio-dia o serviço está completo. O
esquema é repetido uma vez por dia desde março de 2016, quando foi inaugurado
esse terminal pela VLI, com investimento de 130 milhões de reais.
Os trilhos ali formam uma figura
com contorno semelhante ao de uma pera, algo comum no carregamento de minérios,
mas que têm sido usados cada vez mais para cargas como os grãos. Com o sistema,
é possível economizar 10 horas no carregamento dos vagões e no tempo de manobra
para o trem se voltar em direção ao porto, em relação ao sistema tradicional.
Bom para a ferrovia: quanto mais depressa uma carga é carregada, mais carga
rodará pelos trilhos.
A ferrovia em questão é a
Norte-Sul, que já funciona regularmente em seu trecho norte. O projeto foi
lançado no governo de José Sarney há exatos 30 anos com o objetivo de se tornar
a espinha dorsal da logística brasileira, ligando o Brasil de alto a baixo por
trilhos. Mas, de lá para cá, a Norte-Sul foi constantemente tida como um
retrato da falta de planejamento e da má gestão da infraestrutura.
De 1987 a 2007, já sob o governo
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foram construídos apenas 200
quilômetros. Passada mais uma década, os 2 057 quilômetros restantes ainda não
ficaram prontos — há trechos em obras, outros com falta de sinalização e de
pátios de manobra. Quando tudo isso estiver pronto, ainda estará longe dos
4 800 quilômetros de ferrovia prometidos por Lula e pela ex-presidente Dilma
Rousseff, num trajeto em que a Norte-Sul se estenderia no norte até o porto
fluvial de Vila do Conde, em Barcarena, no Pará, e na outra ponta até a cidade
de Rio Grande, no Rio Grande do Sul.
“Obviamente, esse tempo de
construção não é o esperado para uma ferrovia”, diz Bernardo Figueiredo,
ex-diretor-geral da Agência Nacional de Transportes Terrestres e ex-presidente
da Empresa de Planejamento e Logística durante os governos petistas. “Mas o
projeto durante anos foi andando conforme a situação do orçamento, que não
tinha nenhuma previsibilidade.”
Três décadas após o início do
projeto, a Norte-Sul parece, aos trancos e barrancos, trazer resultados. O que
ocorre nos 720 quilômetros prontos entre Porto Nacional e Açailândia, no
Maranhão, é um capítulo positivo dessa história. O trecho é operado pela VLI,
que tem entre os sócios a mineradora Vale, o fundo canadense Brookfield, o
conglomerado japonês Mitsui e o fundo de investimento do FGTS.
A Vale ganhou o leilão do trecho
em 2007, num processo que só teve a mineradora na competição. Explica-se: uma
operação ali precisaria de permissão de passagem pela Estrada de Ferro de
Carajás, pertencente à Vale, para a chegada ao Porto de Itaqui, no Maranhão.
Como não havia garantia disso no contrato, ninguém se interessou. A Vale,
então, ficou com a operação, pagando 1,5 bilhão de reais de outorga, o dobro do
que se acreditava que mereceria na época, segundo fontes envolvidas na
negociação.
Em 2010, o trecho foi
subconcedido à VLI. E, hoje, a ferrovia tornou-se competitiva. O terminal de
Porto Nacional, que recebe carga de fazendas da região, permite uma economia de
8% no transporte de grãos até Itaqui, comparado ao uso de caminhões, e
possibilita a retirada de 200 carretas das estradas todos os dias. “A ferrovia
tem bitola larga, que aguenta composições maiores”, diz Fabiano Lorenzi,
diretor comercial da VLI. “Elas carregam mais grãos e consomem menos
combustível do que outras operações com trens que realizamos no país.”
De volta aos trilhos
Nesse pedaço ao norte, a
ferrovia criou uma situação inusitada: o transporte chegou antes da carga. Algo
bem diferente para um país que vira e mexe depara com os problemas decorrentes
de gargalos logísticos. No último ano, o trecho movimentou 4,5 bilhões de
toneladas por quilômetro útil (uma medida de eficiência, que multiplica o
volume de carga pela distância percorrida) de produtos como celulose, grãos e
combustíveis, mas já está capacitado para transportar até 8 bilhões de
toneladas.
A capacidade disponível hoje é
resultado de mais de 10 bilhões de reais investidos pelo setor privado ao longo
da ferrovia em fábricas, terminais e na melhoria do próprio trecho. O
crescimento do volume transportado vai depender do amadurecimento da produção
agrícola em Tocantins, que hoje explora apenas 1,2 milhão dos 8 milhões de
hectares aptos ao cultivo no estado, sendo 4 milhões deles de pastagens
degradadas. Também depende da atração de indústrias processadoras de produtos
agrícolas.
“Boa parte da exportação na
ferrovia a partir desse trecho será de soja e milho, porque ainda há muita
demanda no mundo por grãos”, diz Alexandro de Castro Silva, secretário de
Desenvolvimento de Tocantins. “Mas queremos que até um terço dos grãos seja
transformado no estado antes de exportado, para agregar valor à produção.”
E mais investimentos estão
chegando. A empresa de energia Raízen, por exemplo, desembolsou 50 milhões de
reais na inauguração em 2014 de um terminal na cidade para receber, via
ferrovia, diesel e gasolina do Porto de Itaqui e distribuir aos postos da
região. Antes, era preciso buscar combustível usando caminhões em outros
estados, numa distância de até 700 quilômetros. O volume movimentado pelo
terminal subiu de 110 milhões para 270 milhões de litros de 2014 a 2016. “Já
estamos discutindo uma expansão”, diz Nilton Gabardo, diretor de novos negócios
da Raízen.
Nos demais trechos da ferrovia,
a situação também parece estar avançando. O governo espera leiloar no primeiro
trimestre de 2018 um pedaço de 1 537 quilômetros que já está quase pronto entre
Porto Nacional e Estrela d’Oeste, em São Paulo — faltam 10% das obras entre
Ouro Verde, em Goiás, e a cidade paulista. Para seguir em frente na concessão,
foi enterrado de vez o modelo que estava sendo adotado por Dilma Rousseff no
setor.
Segundo as regras antigas, a
estatal Valec, que até então apenas contratava as empreiteiras para construir
as ferrovias, seria responsável por operar a infraestrutura. Ela venderia uma
capacidade de transporte para os donos da carga, enquanto operadores
independentes poderiam fazer o serviço para esses clientes. “Esse modelo
pareceu uma tentativa de regular o mercado por uma estatal: ela teria um poder
extremo para fazer as negociações de capacidade com o setor privado e de
maneira não muito transparente”, diz o advogado Rafael Garofano, consultor jurídico
do Movimento Brasil Competitivo.
No modelo novo, a concessão será
feita para uma empresa privada, que terá direito de passagem em outras
ferrovias, uma vez que o pedaço a ser leiloado não tem acesso direto a portos.
Nas renovações dos contratos de ferrovias já concedidas que estão em
negociação, o governo está exigindo as condições de passagem da carga originada
nesse trecho da Norte-Sul. Entre os interessados no leilão estão duas estatais
de fora, a chinesa CCCC e a russa RZD, além da própria empresa brasileira VLI.
Se o governo conseguir fazer a
licitação dos trechos que restam, poderá colocar um ponto final numa história
de desperdícios. O trecho de 855 quilômetros entre Porto Nacional e Ouro Verde,
em Goiás, que tem um desvio em Anápolis, cidade conhecida como um entreposto
central do país, está pronto desde 2014. Mas mantém operações esporádicas. A
Valec só conseguiu fechar três contratos de transporte, de farelo de soja e
madeira triturada, que renderam 32 milhões de reais de receita, valor insignificante
perto do potencial da ferrovia e dos bilhões que foram investidos nos trilhos.
Para manter esse trecho, a Valec gasta 4 milhões de reais por ano.
Quem transita (a pé) pelos
trilhos da Norte-Sul em Anápolis consegue perceber o prejuízo. No porto seco da
cidade, os grãos que chegam dos produtores de Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso
do Sul, a principal região do agronegócio no país, têm saído rumo aos portos do
sul em contêineres instalados em caminhões, enquanto poderiam ser escoados pelo
norte por meio da Ferrovia Norte-Sul. No dia 18 de maio, quando EXAME visitou a
cidade, 18 vagões estavam parados nos trilhos, perto do porto seco, aguardando
as negociações para um transporte de contêineres. Os vagões são da empresa de
logística Brado, controlada pela Rumo, do grupo Cosan, que anunciou em 2015 a
intenção de operar naquele trecho.
Em nota, a Brado disse que
suspendeu temporariamente no fim de junho o projeto de operação, considerando
as condições atuais de mercado e a infraestrutura existente. Até agora os
vagões, que estão ali desde março, ainda não foram retirados. A cada dia que
passa, a empresa perde dinheiro com esse material que fica sem rodar nos
trilhos.
Também estão inúteis ali os
equipamentos da processadora de grãos Granol, os quais custaram 30 milhões de
reais e previam carregar os trens para transportar soja de Anápolis ao Porto de
Itaqui, no Maranhão. “Até hoje, foram realizados quatro embarques de 8 000
toneladas de farelo de soja entre dezembro de 2015 e o início de 2016”, diz
Valter de Lima Filho, gerente corporativo de transportes da Granol. “A
capacidade instalada dessa estrutura para a ferrovia é de 1 000 toneladas por
hora.”
As oportunidades que esses
trechos criarão quando estiverem funcionando são enormes. A fabricante de papel
e celulose Suzano anunciou em fevereiro um investimento de 540 milhões de reais
para produzir 120 000 toneladas ao ano de uma linha de papel higiênico, lenços
de papel e guardanapos em suas unidades em Imperatriz, no Maranhão, e em
Mucuri, na Bahia.
A ideia é abastecer as regiões
Norte e Nordeste, mas, com os novos trechos da ferrovia funcionando, poderia
trazer os produtos para o sul do país a um preço mais competitivo do que por
carretas. Outro exemplo: de olho no avanço da Norte-Sul, o Porto de Itaqui tem
cerca de 2 bilhões de reais em investimentos previstos para sua estrutura e em
terminais até o fim de 2018. “A ferrovia amplia a capacidade de atrair carga
para o porto”, diz Ted Lago, presidente da Empresa Maranhense de Administração
Portuária, responsável pela gestão de Itaqui.
Também houve avanço na Norte-Sul
no sentido de combater as irregularidades e a corrupção que infestaram o
projeto durante décadas. O ex-presidente da Valec José Francisco das Neves,
mais conhecido como Juquinha, foi preso em junho. Ele é alvo da Operação De
Volta aos Trilhos, um dos desdobramentos da Lava-Jato.
Segundo executivos das
construtoras Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez, as empresas teriam feito
pagamento de propina no período de 2003 a 2011, quando Juquinha presidiu a
Valec. Ele e seu filho Jader, que também foi preso, respondiam em liberdade por
acusações de outra operação, a Trem Pagador. Nesta, foram condenados em
primeira instância a sete anos (filho) e dez anos (pai) por formação de
quadrilha e por lavarem 20 milhões de reais obtidos com a prática de crimes
como fraudes em licitação, peculato e corrupção nas obras da ferrovia.
O resultado das irregularidades
é que a Norte-Sul saiu — e muito — do orçamento. As obras chegaram a custar 80%
mais do que o previsto em alguns trechos. No Tribunal de Contas da União, há 40
processos em andamento ligados à ferrovia, dos quais 23 são referentes à
recuperação para os cofres públicos das quantias que foram pagas indevidamente.
“Em média, identificamos superfaturamento de cerca de 27% na ferrovia”, diz o
ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União.
E as obras nem chegaram ao fim. O
trecho central, entre Porto Nacional e Anápolis, que é dito pronto, precisa de
mais 700 milhões de reais em pátios, viadutos e sinalização, que terão de ser
investidos por quem ganhar a licitação. No trecho sul, de Ouro Verde a Estrela
d’Oeste, ainda faltam 10% da construção, prometidos para o primeiro semestre de
2018, quando deverá ocorrer o leilão dos trechos central e sul.
Com todos os problemas que a
cercaram, a pergunta que fica é: a Norte-Sul vale a pena? “O conceito da
ferrovia é correto, e o traçado faz sentido porque o Brasil precisa de uma
logística de integração, assim como os americanos têm o rio Mississippi”, diz o
economista Cláudio Frischtak, sócio da consultoria Inter.B, especializada em
infraestrutura. “Mas, como sempre no Brasil, a execução foi ruim, e a obra foi
usada para subtrair sistematicamente recursos do Estado.”
Com o novo processo de concessão
e a corrupção sendo passada a limpo, a Norte-Sul pode estar entrando em outra
etapa de sua história. Trocadilhos à parte, o que se espera é que, daqui para a
frente, ande nos trilhos.
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